você acha que conhece são paulo?

Gabi Blenda
6 min read3 days ago

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Avenida Paulista - acervo pessoal

o mundo é desse tamanho e desse jeito, ok? Então vou voltar para o meu quintal... ao lado da pessoa de quem eu amo.

quando são paulo bate com força, a vontade de voltar pra casa aperta.

diferente de ontem, hoje eu não fui feliz.

o teatro oficina me deixou em êxtase.
a pinacoteca me rendeu muitas reflexões.
talvez pelo contexto da região.

ainda que ontem eu tenha atravessado a rua e desviado de uma pessoa em situação de rua que me chamou, ainda que tenha desviado pra chegar no teatro oficina, lá fui mais feliz na experiência humana.

hoje na pinacoteca foi foda.

andar da República, passando pelo ipiranga, até chegar na estação da Luz.

desviar de pessoas em situação de rua, ter saído com bolsa pequena pra não chamar muita atenção.

passar por uma ruela com mulheres fazendo trabalho sexual. (ah agora entendi porque a dona não aceita visita de homens na pensão, pra não se tornar prostíbulo)

aí chego na pinacoteca, local lotado, muita obra de arte, na verdade é um complexo de galerias, muita arte, muita informação, não vou dar conta, os comentários esdrúxulos das pessoas brancas vendo as obras.

obras do modernismo, pintando o brasil da época da invasão portuguesa no brasil, da escravização, os quadros modernistas mostrando o abandono, o trabalho, os corpos de pessoas negras. isso tudo ainda tão real. os corpos marginalizados ainda são negros em sua maioria, na Cracolândia e na rua. eu não sei quem me furtou, mas há uma grande chance de ter sido um homem de cor negra.
o excesso de arte e informação, o excesso de pessoas e ruídos. muitos ruídos. tanta obra de arte visual, galeria, se tornou um ruído excessivo de informação, pessoas falando, tirando foto. um absurdo. parecia uma cena de arte do absurdo. tudo isso ao redor de que, de arte? juntar tudo isso pra que? o que pode a arte diante da realidade e concretude?

vou na outra galeria, fico querendo a bolsa à venda. primeiro a de 40, depois a de 150. me vejo usando a bolsa da pinacoteca em salvador, pra mostrar que estive lá, fui ali. gastei 12 reais num bloquinho pequeno e lápis pra dizer: estive aqui. pegar, usar, trazer algo concreto. sou das artes. mas não pego. o valor me faz titubear. quero, mas não me dou.

aí fui na estação pinacoteca. acompanho uma menina que também estava indo pra lá ver uma performance. conversamos. sobre arte, sp, ela fotografa, pensa em estudar iluminação, luz. falamos das pessoas em situação de rua. muitas famílias, ela diz. no Rio tem, mas não é assim. ela é de santo andré, pertinho da capital paulistana, e está sempre por lá. entramos e nos separamos. ela vai ver a maldita performance, eu vou ver a exposição no térreo.

selas de prisão. é óbvio que não fui feliz hoje. nem toda arte é pra te fazer deixar feliz, fica a lição, o aprendizado. título de newsletter.

como a gente convence alguém a pagar por algo?
eu estou pagando por tudo isso né.
o aluguel, o transporte, o alimento.
então terei que cobrar também....
sei lá.

as selas da prisão, eu chego me arrepio no lugar. em uma especifico, a do banheiro com vaso sanitário no chao.

vejo as outras sedes, os outros andares.

ah antes vejo as fotos da época da ditadura, as canções de geraldo - pra não dizer que não falei de flores - o roda viva de chico (tão feliz aquela peça da etufba, sendo que o tema da música veio de um lugar infeliz).

aí a performance era de gente correndo. mulheres correndo de cabeça de cavalo, orelha de cavalo, cabelo feito crina, e homens ou mulheres vestidos com casacos que lembram ursos polares. foi insignificante. nem mesmo ridículo.

depois de ver os quadros modernistas que retratam um brasil ainda tão atual, desde a escravização a industrialização e até hoje tudo se mantém igual.

foi insignificante aquelas mulheres correndo numa sala vermelha.

no andar de cima a exposiçao do movimento negro, feminismo negro, imprensa negra, a presença negra na cidade de sp, o genocidio da juventude e populaçao negra.

mais uma vez, insignificante aquela performance do cavalo.

eu estou gostando de tudo isso.
sp.
me dá uma concretude, uma materialidade pra existência e pro mundo.
uma solidão também, desvinculada de meus pais não só financeira ou emocionalmente. a emancipação, mas sobretudo ESPACIAL, a distância geográfica, física, deles foi algo fundamental e necessário pra mim, sei lá porque. estar a 3 dias de distância pela terra, a 2 horas de voo, sei lá.
Não bastou pra mim mudar de casa, como fiquei com o ex durante um período. eu precisei mudar de cidade. precisarei da separação física e material, concreta.
ao mesmo tempo , isso tem seu preço. o do aluguel. o do sentir-se pequena, vulnerável numa cidade grande e ter que cuidar de mim mesma, sem ter o ninho, colo pra voltar, nem dos pais nem do ex.

insignificante a performance do cavalo.

e em paralelo, as pinturas penduradas do outro artista, tão impactante, acho que foi a minha predileta, depois aquela das que gosta de objeto e trabalhou em ala psiquiátrica. uma geometria interessante. muito impactante as folhas penduradas desenhadas no último andar. muito interessante a trilha de árvore, resto de madeira.

meu celular com a bateria cada vez mais fraca.
pensei, vi o preço: 26, 27 reais, 30 reais pra voltar pra casa de uber.
pensei até andei até o metrô. descobrir onde fica estação vergueiro. sei lá. mas basteira descarregando, preferi não arriscar e pagar pelos 30 reais. meu luxo, meu pequeno privilégio. poder pagar uber de volta pra casa, porque não sabe qual estação do metrô pegar.

(eu me dando conta que tenho escrito pouco nos docs, mais no caderno mesmo e menos no celular, porque tenho priorizado deixar guardado pós furto e também vivendo mais talvez, sei lá.)

pego o uber. o cara ouvindo sei lá, governador de são paulo falar da cracolândia.
o discurso localizado.
o problema não é que as pessoas na cracolândia "não estão sendo úteis e precisam ser úteis e produzir" não é esse o problema.
o problema não é que elas “não contribuem pra nosso belo quadro social.”
o problema é o sistema econômico.

ele fala de iniciativa público e privada, que porto seguro melhorou a região, que é perto da cracolândia, e foi exatamente saindo de lá da peça musical que fui furtada, eu não sabia que ali era a cracolândia.

a menina hoje - aline da pinacoteca - falou que ali na estação da luz era a cracolândia e depois foi se espalhando.

sp tem tanto muro pixado além dos murais de grafite. a cidade é tao abandonada, muito prédio desocupado pixado, muita gente na rua. acho que o pixo não é o problema. é uma expressão, manifestação urbana, linguagem, arte das ruas urbanas.

RÁDIO NO UBER:
- o problema é que eles não estão produzindo
- tornar essas pessoas úteis
- iniciativa pública privada
- tem trabalho em lavoura, campo de laranja eucalipto, precisa de caminhoneiro, maior exportadora de suco de laranja do brasil e do mundo, tecnologia, construção civil precisa de mão de obra trabalho t

mas e se essas pessoas quiserem ser artistas? filófsofas? cientistas? mais uma vez, o que pode a arte? e a arte precisa transgredir cada vez mais e chocar cada vez mais porque já está tão banalizada a pobreza e violência. o que pode a arte? se cada setor social, médicos, educação, saúde, limpeza urbana, plantação, agricultura, judiciário, legislação religião, esporte, lazer, entretenimento, cultura… não pode ser só isso, entretenimento pra conseguir voltar a trabalhar de sexta a sábado no horário comercial de expediente. o que pode a arte? que transformação a arte pode fazer? acho que só ela (a arte) olha pra essa realidade e não fugir dela, mas encarar e tentar traduzir, REPRESENTAR (já que teatro é a arte da representação) já é uma contribuição. ainda que a gente admita: não vamos dar conta. não vamos transformar o mundo. vamos talvez levantar a conversa, puxar o assunto, encarar o problema, espelhar, refletir. é isso que podemos fazer? esse é o nosso limite de ação e possibilidade?

paguei os 30 reais do uber. achei o motorista horrível, folgado, nem quis avançar pra me buscar na porta da pinacoteca, tive que andar até a prefeitura. vai que ele também estava preocupado né, com medo da região. enfim

desisti do queijo e presunto. vim direto pra casa mesmo, só fiz atravessar a rua do uber. esquentei minha água e comi o biscoito cream cracker com o achocolatado. preferi deixar o miojo e atum pra amanhã. talvez jogar até o milho verde por cima.
enfim.

a bolsa continua na minha cabeça. quero ela, achei bonita. talvez numa próxima oportunidade, quando eu começar a trabalhar. aí volto lá só pra comprar a bolsa. rs

ostentar que estive em sp e na pinacoteca. que fui parte disso aqui.
dessa cidade maluca e caótica.

Texto do meu diário, escrito em 12 de agosto de 2023.

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