Orelha urbana
Ônibus, horário de almoço, pessoa carregando latinha de cerveja começa a falar com quem está ao lado:
A separação de meus pais foi muito traumática. Não importa se eu sou menina, gay, lésbica. Não se ajeitaram pra morar junto? Se ajeita pra separar! Cresci vendo aquilo, eles brigarem, saírem na mão no meio da rua. Minha mãe chorava, mentia, traia. Meu pai morreu de câncer. Essa coisa de mau costume de que a mãe que cria.
Meu pai era assim: não dizia eu te amo. Depois que ele perdeu a irmã que ele mais gostava, que ele começou a me abraçar, fazer cafuné. Porque antes não tinha nada disso, não. Porque assim, as coisas que ele me disse ali no Hospital Roberto Santos, HGE… As coisas que aconteceram ali entre nós… Foram 4 anos que compensou tudo, todo afeto que não tive, o denguinho. A gente foi conversando e eu entendi tudo. Meus avós eram pessoas grossas, teve aquela criação mais rígida. Choro? Pai não tem que pegar filho no colo. Ele nunca teve uma referência de amor. Mas fui ver que aquele amor que ele me dava, e eu reclamava, era algo imenso, porque ele não tinha nenhum. Ele tirou do nada. Me proporcionava algo que ele nem teve, que nem sabia o que ele estava fazendo. Me arrepia. É umas histórias fortes, né?
Imagino isso: se eu tiver um filho, essa dor eu vou ter. Eu preciso ser pai. Tenho muita mágoa, muita tristeza. Mas já racionalizei isso e entendi que o que eu tenho é muito amor. E minha mãe dizia: a tristeza é essa, ele não vai dar um abraço no meu filho.
O olhar que ele me dava… Nada no mundo vai pagar isso. Ele, quando ia passar sonda e o canal dele já estava muito machucado, eu dava a mão a ele quando passava sonda. E o olhar dele ali, eu sentia, não podia fazer nada, só dava a mão. A televisão que levei, eu percebia pela visão periférica que ele estava me olhando, me namorando. Que homem incrível. Tudo de bom que existe em mim veio de você. A responsabilidade com as pessoas, com o dinheiro. E um homem da época da ditadura, veio ter um homem filho gay.