O tempo embola tudo
Depois de visitar minha avó, precisei dançar para tirar a tristeza do corpo. Por um segundo, ela veio: minha princesa! Depois voltou para o lugar onde ela balbucia uma canção irreconhecível. Sua pele fina e enrugada. Seu olhar perdido. Seus dentes caídos. O cabelo totalmente prateado. A fralda caindo da perna, enquanto anda do sofá até a cama, com meu braço em sua axila para apoiar. Sua barriga flácida aparece quando se deita. A barriga onde morou minha mãe. E minhas tias e tio. Minha vida dependeu da existência do ventre de minha avó.
Voltei para casa e precisei cantar a música mais triste que conheço. E depois outra. E mais outra. Meu avô já não está aqui, há algum tempo. A família disputando os vintens da poupança. Doze anos se passaram, sem reconciliação. Amanhã minha tia faz aniversário, cinquenta e sete anos. Lembro quando eu era criança e fui visitá-la na idade de cristo. Hoje eu estou há dois anos de me aproximar disso.
Voltei para casa e precisei chorar, dizendo: essa é a coisa mais triste. Ver minha avó com Alzheimer foi mais triste do que os homens que vi na Cracolândia.
Depois de cantar, dancei. Até que a dança se transformasse em pulos. E os socos no ar acompanhassem a batida da música.
A gente precisa criar algo bonito, pra um mundo tão feio. A gente precisa fazer arte, porque se não, não suporta.
A gente ou eu?
Hoje olhei a baixada pela minha varanda e finalmente, depois de 6 meses me senti bem em estar em casa. Em puder fazer cafuné no cabelo grisalho da cabeça esquecida de minha avó.
Um instante com ela, valeu a pena voltar de SP.
Este ano ela completa 80 anos. Meu avô morreu lúcido, apesar dos problemas no coração. Do risco no meio do peito que cresci encarando.
Deitada na cama de minha avó, vi algo entulhado onde devria estar a gaveta do guarda-roupa. Apesar de querer saber, não quis perguntar se aquilo eram fotos. Encaro minha tia do sofá enquanto penso: não se fala sobre a disputa da herança. É como se nada tivesse acontecendo. É como se isso não separasse a família de estar perto de minha avó nos seus últimos dias.
Voltei para casa e dancei por três horas. Só me resta expulsar a tristeza, para que ela não se acomode em meu corpo e me faça de seu habitat.
O tempo passa. Eu não sou mais a criança que visita a tia no seu aniversário de 33 anos. Amanhã ela faz 57. Mês que vem minha avó faz 80. Em março eu faço 31. Fiquei calculando quantos anos minha tia tinha quando ficou grávida de meu primo, que nasceu no mesmo ano que eu.
- Quantos anos você vai fazer amanhã?
- Não sei.
- Em que ano você nasceu?
- 68.
Penso que minha mãe nasceu em 66. 68, 78, 88, 98 menos 4, porque nasci em 94. 26 anos. Minha tia teve meu primo aos 26 anos. Minha mãe me teve aos 28. Meu pai tinha 37.
Já não ando pela casa de minha avó com a liberdade de quando criança. Aquela agora é a casa de minha tia. Encaro disfarçadamente as câmeras. Saio do prédio com a certeza que apesar de ser o mesmo endereço, ali não é o mesmo lugar em que cresci e brinquei.
Foi bom estar de volta com minha avó, apesar dela só ter me reconhecido por um segundo, depois de muito tempo acariciando seus cabelos.
(Criar) A obra é mais importante do que o sucesso. A família é mais importante do que a carreira.
Eu não sei se terei filhos. Tenho sonhado com uma pessoa que já passou.
O tempo embola tudo e coloca passado, presente e futuro em uma sacola só.
P.S.: Às vezes penso quanto tempo de vida ainda terei de companhia de meus pais. 10? 15? Às vezes não acredito que eles têm 60 e 70 anos.
- Quantos anos você vai fazer?
- Eu e meu primo fazemos 31.
- Ainda?
- Ainda, não. Já! Eu tinha 15 ontem.
Falo pra ela do meu remédio pra depressão. Ela diz pra eu não deixar de tomar.
Eu volto para casa e danço para curar. Talvez a arte seja uma forma de sarar as feridas que doem tanto a ponto de se pensar que nunca vai passar.