O livro perfeito para ler durante uma pandemia
Ao contrário de muitas indicações que vi por aí, não é um livro sobre guerras e outras pragas. É sobre a escuta e sobre a vida. Desde o início do meu isolamento social, meu ritmo de leitura — assim como tudo no mundo — foi alterado. Estou lendo bem mais devagar. Uma lentidão ultrajante. Principalmente para mim, que colecionava lista de leituras. É como se o tempo estivesse suspenso, há três meses vivo numa cena em câmera lenta. O cenário não muda. Os personagens são os mesmos. As falas eu sei de cor. Uma cena se recusando a ter fim. Enquanto isso, folheio as páginas do livro que me acompanha.
Por que este livro é perfeito para a quarentena? Porque fala sobre relacionamentos e sobre comunicação. Todo mundo acha que sabe se comunicar, mas a verdade é que não sabe. O mundo está colapsando exatamente por isso. Falhamos em nossos relacionamentos.
Estamos todos no mesmo barco: mais solidão e confrontados com o aumento no número de mortes. Um momento oportuno para reflexão. Como você quer viver até o seu último dia? Não é papo de coach, é conversa de psicanálise. Pulsão de vida e de morte.
Imagens ao vivo do meu sentimento durante a leitura:
Se você tiver que ler apenas um livro em 2020, invista seu tempo e dinheiro neste: O Palhaço e o Psicanalista, de Christian Dunker e Cláudio Thebas.
Conforme ilustração do meme, seguem trechos destacados. Tudo o que está escrito abaixo foi retirado do livro. Boa leitura!
Por que o sapato do palhaço é tão grande?
O sapato do palhaços é grande porque não é dele. O palhaço simboliza nossa natureza humana, essencialmente despossuída, errante e perdedora. Somos despossuídos tanto porque é assim que viemos ao mundo quanto porque as posses que acumulamos ao longo da vida são provisórias.
O que tem a perder aquele que sabe que não tem nada?
Somos perdedores porque durante nossa viagem vamos inevitavelmente deixando coisas para trás. Projetos, ideias, experiências, amores, épocas da vida e até sonhos. Vamos perder nossa jovialidade, nosso tônus, nossos dentes, nossos cabelos, nossos pais. Se tivermos sorte, nossos filhos que nos perderão.
Falar demais é o primeiro princípio de quem não está escutando.
Vulnerabilidade
- O silenciamento da loucura é também o abafamento da palavra inconsequente, da palavra livre da palavra errante, da palavra que brinca ou faz poesia.
- Palhaços e psicanalistas partem do pressuposto de que é possível e necessário voltar a escutar a loucura. Que na loucura há um fragmento de verdade que precisa ser dito por ela mesma. Que nunca deveríamos colocar palavras na boca da loucura alheia. Antecipamos palavras. Colocamos o que já sabemos sobre o outro à frente dele.
- Tendemos a achar que aquele que se revela vulnerável, ou seja, que não esconde muito bem sua loucura, no fundo é um fraco que está pedindo misericórdia ou pena, ou um desajustado que precisa de mais controle, quando não de uma camisa de força.
- Se ele admite não conseguir resolver um problema sozinho, se não possui os bens simbólicos ou materiais necessários para ser “alguém na vida” ou ainda porque se revele desorientado e não saiba aonde pretende chegar, sentenciamos que sofre de algum déficit de independência ou de autonomia.
- Nos tornamos surdos àqueles que insistem em se fazer espelhos de nossa vulnerabilidade, dependência e loucura.
- Daí a importância de reconhecer e experimentar sua própria vulnerabilidade, para poder reconhecer e acolher a vulnerabilidade do outro.
- Na nossa loucura sempre se insinua, ainda em voz confusa ou abafada, um fragmento de nosso desejo.
- E por isso uma vida que não enfrente as próprias loucuras, inocências, contradições ou irracionalidade é uma vida pobre, que adia a questão do desejo. Quanto ao que queremos da vida e ao que somos, deixemos isso para depois. Quanto às perdas, decepções e incertezas, o amargo remédio universal: trabalha que passa. [Contém ironia]
Negação
- Quando olhar para uma situação, tente localizar onde está o “não” que a organiza.
- Perceba quando for a quinta ou sexta vez que você repete um “não” ou um “mas” quando responde ao seu interlocutor.
- O truque para identificar a denegação está na aparição de uma ênfase desnecessária ou uma reatividade defensiva. É pela força exagerada ou pelo deslocamento de contexto que se percebe quando estamos em denegação.
Culpa
- Culpar os outros é frequentemente um sinal de que não estamos conseguindo reconhecer nossa própria implicação ou responsabilidade no curso dos acontecimentos.
- A implicação produz sujeitos e desejos, a responsabilidade produz compromissos e reparações, já a culpa produz vítimas e carrascos, santos e vilões.
- Mas, com frequência, produzimos culpados unicamente para não nos perguntar sobre o nosso nível de responsabilidade.
- A responsabilidade e a implicação acontecem em silêncio, a culpabilização e a denúncia são ruidosas. Responsabilizar aponta para a solução. Culpar aponta para o problema.
Pedido
- Pedir é também aceitar que poderá receber um não (do contrário, estamos diante de uma ordem e não de um pedido).
- Pedir nos desloca da posição de observador passivo para uma posição ativa, de autor comprometido. Confira se o quanto você se autoriza a pedir é compatível com o quanto de recusa você está disposto a aceitar.
- As coisas que mais queremos não devem ser pedidas, por exemplo, amor, respeito, confiança e autoridade.
- Mas se não podemos pedir o que realmente importa, o meio para criar esses sentimentos sociais é simplesmente oferecendo eles ao outro. Se você quiser conquistar a confiança do outro, coloque-se em situações nas quais ele pode confiar você.
Escuta
- Escutar é uma atividade de risco, quem quer ficar em um ambiente seguro e sob controle deveria se afastar das palavras alheias. De fato, é isso que muitos fazem, uma vez que a escuta compromete, cria equívocos e implicações. Fomos ensinados desde pequenos a não falar com estranhos.
- Nunca se sabe o que virá quando se abre uma porta. Por isso é compreensível a atitude de bolha na qual indiretamente regulamos quem e o que escutamos e quem deve ficar de fora de nossos circuitos de escuta.
- Os que pouco escutam restringem-se a um ou dois ângulos, do tipo aprovar ou reprovar, exercendo, assim, de forma muito opressiva, o poder de decisão do sentido da mensagem.
- Isso é crucial porque para o bom escutador importa abrir o sentido para a indeterminação produtiva, ou seja, nem o que eu quis dizer, nem o que você quis dizer, mas o que um terceiro: o mundo, a experiência, as coisas em si, o inconsciente, quis dizer. Precisamente porque se abriu o momento da dúvida, do espanto e do não saber que podemos pesquisar juntos para ver do que é feito o sentido naquele encontro.
- O que o silêncio do outro, que se infiltra no meio das palavras, pode estar te falando.
- Não imagine que as pessoas estão sedentas por serem escutadas.
- Pelo contrário, elas vão resistir. A maior parte dos desesperados está sequioso de ouvir algo muito específico que eles já sabem o que é, ou seja, a confirmação de suas crenças subjetivas.
- Não é porque as pessoas vivem situações de desespero que isso as torna mais aptas ou disponíveis para se escutarem. Escutar o outro nessas circunstâncias é como se aproximar de alguém que está se afogando. Provavelmente você sairá machucado, um tanto aflito e engolirá água também.
- Estamos insistindo em como a escuta começa por uma espécie de renúncia a exercer poder. E o poder existe e se repete em discursos cotidianos.
- Nessa repetição de sentidos antecipados, referendamos relações de poder. Já sabemos quem você é, pela forma como se veste, pelo carro que dirige, pela forma como usa as palavras. E se já sabemos quem você é, sabemos também o que você vai dizer e como devemos nos comportar: obedecendo.
- Na arte da escuta nem sempre as pessoas estão falando conosco. Elas podem estar em seu próprio picadeiro, encenando personagens e roteiros para os quais querem nos arrastar impiedosamente.
- Nos tornamos cada vez mais buscadores de resultados concretos e mensuráveis, o que nos subtrai do caminho e nos coloca antecipadamente em pontos de chegada. Escutar é essencialmente estar no caminho.
- Evite começar uma frase por “você”. Em vez disso, fale de si, sinceramente, sempre que possível. Trazer o foco para o eu contribuí para diminuir a pressão sobre o outro, criando um espaço para que ele possa continuar te escutando.
- A gente nunca soube de um casamento que tenha acabado porque ela não tinha ideia de onde fica Trinidade e Tobago, o cara de atrapalha ao cortar cebolas ou um dos dois não sabia trocar o pneu do carro. Esse tipo de coisa a gente já fica sabendo no primeiro mês de namoro.
- Da mesma forma, nas empresas, grandes promoções ou demissões não se dá por competência ou incompetência técnica. Isso se descobre no currículo, na entrevista ou no período de experiência.
- O bicho pega mesmo é no relacionamento. E relacionamentos são feitos de palavras e encontros.
Esperamos ter ficado claro até aqui que escutar dá trabalho, toma tempo e envolver riscos.