O dia em que perdi minha voz.
Eu não sei a minha idade. Sei que sou uma criança. Estou sentada no chão do quarto de meus pais. De costas para a parede. O mesmo lugar em que minha mãe me coloca de castigo. É aqui que me colocam sentada para aprender a ler. Um livro religioso. Levanta-te e anda, me diz o título. Na capa, esculturas barrocas. Eu ainda não sei o que barroca significa. Tenho um poema para aprender. Palavras organizadas em parágrafos. Estrofes. Recomendações religiosas. Faça aquilo, não faça aquilo. Seja boa menina, não seja má menina. Eu passo a tarde repetindo os versos. Decorando as frases, repetindo o ritmo. Para quando meu pai chegar em casa, à noite, e pegar a lição, eu ler bonito.
Eu não sei a minha idade. Sei que sou uma criança. Estou sentada no sofá de casa. Já é noite. Meu pai chegou do trabalho. Eu gaguejo e atropelo as palavras. Fico nervosa quando começo a ler. Meu pai não tem paciência, levanta, esbraveja e me compara com a filha do colega de trabalho dele.
Hoje eu sei a minha idade. Sei que sou uma mulher adulta. Sei que fiquei muda. Nenhuma só palavra saiu de minha garganta desde que comecei a ler. Agora apenas escrevo essas palavras. Um monte de cadernos com tudo o que jamais pronunciei.