o caminho se apresenta

intervenção urbana numa sexta-feira em salvador | 14.04.2023

Gabi Blenda
5 min readApr 15, 2023
Foto tirada no Mocambinho Bar após intervenção urbana

agora eu sei
que na praça da piedade
vive uma criança
chamada samuel
com quem brinquei esta tarde
com os meus pés descalços sentindo
o mármore quente do sol das 15 horas
segui as linhas retas do piso colorido
vermelho amarronzado
entre os azulejos cinzas
e encontrei
um buraco no caminho
uma pedra no caminho
um pelo de pombo no caminho
fiquei pulando feito saci
por causa do chão quente
e samuel veio pular comigo
ele disse que minhas colegas de turma eram
a água
o vento
a natureza
o sangue
e a má
com base nas cores da roupa que cada uma de nós estava usando
peguei a tarefa de deitar no chão
e pra quem já estava descalça mesmo
parecia nada
deitei
não me senti como aquela mulher que dormia sobre o papelão
ou aquele casal deitado no colchão sobre a grama
porque ali não era a minha casa
eu tinha um chuveiro quente pra onde voltar
samuel brincou comigo e com as outras colegas da turma
adultos passavam questionando com o olhar
o que é isso?
eles franzinham o cenho
mas não se atreviam a se aproximar
e falar coma gente
como fez samuel
outras crianças foram se aproximando
irmãos
e perguntavam
o que é isso?
é brincadeira
respondia samuel
e começaram a brincar com a gente
e agradeci internamente
por aquele capitão da areia
ter mantido viva a infância dentro dele
apesar de morar ali
naquela praça
naquela rua
onde ousadamente
desrespeitosamente
invadimos
pra levar uma intervenção urbana
com nossas corpas
com nossa pele
com nosso tato
encontrei pelo caminho
uma mochila
faca copo garfo descartável
resto de estojo de maquiagem
as colegas encontraram
duas calcinhas
e manchas de sangue no chão
eu fiquei parada observando tudo isso
e a professora me chamou de volta à exploração
saímos pelo portão da praça da piedade
que foi desenhado por carybé
mas acho que poucas pessoas sabem disso
a profa sentou no chão em frente à igreja de são pedro
e nos sentamos também
e samuel veio atrás
e deu uma braço em cada uma
e buscou a irmã marina
pequenininha
pra mostrar pra nossa colega
que também se chamava
marina
leventei
levantamos
façam perguntas banais e de grande importância
que horas são
você já conheceu o grande amor da sua vida?
seu pai gostava de sextas feiras?
qual o nome do grande amor da sua vida?
que dia é hoje
eu não sabia que era 14
mas sabia que não era 17
como o senhorinho sentado na praça me respondia
e a colega começou a dançar na borda da calçada
e foi se formando uma linha
com nossa turma
de mulheres loucas coloridas
dançando
o pagode das antigas que tocava do outro lado da rua
na loja de eletrodomésticos
e dançamos
coloridas e loucas
e quando os carros paravam eu perguntava
como é seu nome
e acenava um oi
e perguntei o que te faz feliz
e ele respondeu sorrir
e o que te faz sorrir
e ele respondeu alegria
e o que te faz alegre
e ele calou
mas o amigo ao lado, motorista, respondeu com um gesto
dinheiro
a professora sussurra
escolhe alguém pra ler sua carta
e eu perguntei se podia atravessar a rua
e fui ler a carta pra vendedora que apontava pra gente dançando também
ela me deu atenção
até uma cliente entrar na loja
e minha poética ficou ali interrompida
suspensa
esperando por um fim
na frente da praça da piedade
no meio da rua
seguimos o fluxo
uma colega parou pra ler sua carta pra senhora sentada sozinha no banco assistindo youtube
eu levanto os braços pra sinalizar pra turma
a professora levanta os braços me respondendo
e todas levantamos os braços
e ficamos com os braços pra cima
e começamos a mover as mãos
e se forma um cortejo
de pessoas passando e levantando os braços também
e dizendo
amém
axé
paz
e a colega que estava lendo a carta chega sem entender nada
mas levanta o braço também
e atravessamos a rua da forca
com mulheres se embelezando
na máfia da sobrancelha, disse a colega
e chegamos no 2 de julho
e eu compro uma garrafa gigante de água, pensando em todas nós
e entre as flores dos quiosques
eu amei as roxas lilászinhas
e vi um homem bêbado sentado
e pensei várias vezes
se deveria ler minha carta para ele
parece bêbado
não sei se é perigoso
mas ele também merece arte e poesia
também merece ser tratado como humano
e eu sento
apesar das dúvidas
apesar de olhar ao redor me perguntando se estaria segura
e ele me conta
da pimenta que comeu no almoço
do soluço
enquanto termina de beber a garrafa de álcool
e fala dos 9 anos na rua
em que perdeu pai mãe filho esposa
e não sei se é verdade
mas não tenho porque cogitar que seja mentira
e ele parece enjoado
e que vai vomitar
e fico segurando a carta na mão
e ele fala: leia
me pergunta se tenho um livro
lhe respondo se ele quer ter um livro
ele disse que queria um livro da vida dele
e fala de alguma instituição na ufrb
em que ele procurou ajuda
e outro no largo de roma na irmã dulce
que ele já tentou se recuperar tratar
ele abre a mochila e eu não sei o que vai sair de dentro mas observo aguardo
me mostra os rémedios que toma
eu pergunto se o cachorro de pelúcia pendurado na mochila tem nome
ele diz que não é bicho vivo
mas diz que tem nome sim
Pingo
e então eu pego um pequeno trecho da minha carta e leio para ele
e agradeço no final a escuta e estendo a mão
sidney o nome dele
aí fomos pra mesa do bar
eu e a turma
depois da professora dizer que encerramos as ações
e eu exclamo: já?
eu ficaria ali a tarde toda
descendo a rua
lendo cartas para as pessoas
ela pergunta você já teve um bom momento?
e lembro de nossas mãos pra cima e a gente dançando na calça
digo que já
ela responde que as colegas também
pergunto se todas já leram as cartas
fomos pro bar
relatamos a vivência ocorrida
partilhamos com mais algumas pessoas
que chegam à mesa
com suas vulnerabilidades
e dividimos
as moedas que tínhamos
a atenção que tínhamos
oferecemos
riso e lágrimas
umas às outras
e a quem passava
e lemos então
algumas de nós
nossas cartas
todas sobre o amor
porque a aula anterior já tinha sido de tanta dor
que todas
individualmente
inconscientemente
silenciosamente
escolhemos falar sobre o mesmo tema
sem importância para o mundo
mas fundamental para nossas corpas
o amor.

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Gabi Blenda
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