Escorrendo pela toca do coelho
Lembrei da festa surpresa que organizei para minha mãe. Era seu aniversário e ela passou o dia no trabalho. Em casa, eu enchia as bolas coloridas e fazia bolo. O ar cheirava a látex e açúcar.
Quando eu era criança, me escondia sob a pia da cozinha da casa de minha avó, onde ela guardava panelas cor de estrela, água sanitária, sabão em pó e fumo — que meu avô reprovava.
Se eu fechar os olhos agora, ainda sinto o cheiro que invadia meu olfato, enquanto me espremia para caber ali dentro, com meu primo ao lado. Ficávamos horas apertados entre panelas bem areadas e produtos de limpeza, rindo dos adultos que nos procuravam.
Hoje minha perna sozinha não entra naquele cubículo. Faz um bom tempo que deixei de caber em lugares secretos e talvez por isso me sinta abatida. Agora não tenho onde me esconder.
Durante a aula de criação literária eu reparava no senhor de cabelos brancos. Era impossível sua figura passar despercebida. Além da diferença de idade — as cadeiras da sala todas ocupadas por jovens universitários — ele tinha um jeito exótico de se vestir. Calçava tênis, meias de algodão até a canela e trajes esportivos.
Eu gostaria de saber mais da sua juventude, quais escolhas o levaram até ali, cursar Letras aos cem anos. Mas ele estava o dia todo ocupado com aulas em diferentes campus. Apesar da distância, ele fazia o trajeto andando, como uma atividade física. Ele corria atrás do tempo perdido.
Na fase suicida-depressiva da minha adolescência, eu era constantemente surpreendida pela imensa vontade de viver do meu avô, mesmo quando os médicos garantiam para a família: deste ano ele não passa.
Um réveillon após o outro, meu avô continuava me dando relógios de presente de aniversário. Na época eu não entendia que aquilo era uma metáfora. Eu não entendia porra nenhuma. Mas a vida ficava mais tranquila quando eu cheirava sua careca, encostava minha cabeça em seu peito e ouvia ele reclamar que o coração doía.
Agora o meu que dói, às vezes.