Era apenas uma sexta-feira santa
Basta um corte de cabelo dar errado, que a gente se confronta com a vaidade feminina.
Com uma autoestima construída na aparência, neste lugar comum e patriarcal de “mulher tem que ter cabelo longo”.
E tocou, direto na ferida.
Enquanto eu percebia o cabelo cada vez mais curto, pensava: desapego.
Saí da cabelereira pensando não, isto não é uma mudança de Vida, é só um corte ruim. Ainda paguei pra ficar insatisfeita (depois de juntar dinheiro por meses — artista desempregada, crise financeira no país, setor da cultura foi um dos mais atingidos pela pandemia…).
É assim que se sabe que o corte ficou realmente ruim: sair do salão já comprando seis versões diferentes de tictacs coloridos e uma faixa vermelha.
Chego em casa, encaro o espelho da sala, digo pra mãe que não era o que eu queria, que falei com a cabeleireira (não era a Leila, infelizmente, antes fosse) que estou gostando do cabelo longo, que é pra cortar o mínimo, só as pontas.
E ela ainda encostou a mão na minha nuca, combinando o tamanho.
Quando a cabeleireira falou em camadas, não era isso que eu tinha imaginado; mas sim um outro corte, que ela já tinha efeito em mim, e que na época eu gostara.
Olho no espelho do banheiro desta vez, dizendo em voz alta: é aceitar a derrota e seguir em frente, descobrir formas de conviver com isso, ficou hoRRÍvel; rio, mas com dor.
Entro pro banho e um sabor amargo na boca me acompanha.
O último texto que escrevi sobre um sabor amargo na boca foi quando vi a foto de YYYY de mãos dadas com XXXX.
Vaidade feminina.
Então, no banho, sob a água morna, chorei. Finalmente.
Mãe me disse vai passar e eu respondi é, mas só passa depois de se permitir sentir a emoção.
Só passa depois depois de rir e chorar sobre isso.
Quando eu caminhava de volta pra casa, lembrava da irmã em Fleabag.
Eu pensava no candidato a crush e ok, meu cabelo não está aqui pra agradar ao outro; a questão é que não agradou nem a mim — e agora a gente descobre se ele estava afim de mim mesmo ou só da aparência (como se eu fosse uma miss beleza… — me censuro pelo raciocínio patriarcal).
Converso com mãe sobre o sabor amargo na boca e ela menciona frustração. Eu respondi não, é pior.
Em silêncio, pensei que frustração eu conheço bem. Ando estudando os níveis de castração na psicanálise, desde que me embrenhei por essa rota torta de atriz-artista-roteirista, tem sido frustração atrás de frustração. Tudo bem, é através da castração que a gente cresce mesmo, atravessasse a castração desde a tenra infância pra aprender a encarar os limites, admitir as (im)potências, viver entre as (im)possibilidades.
Esse sabor amargo na boca é vaidade feminina, a autoestima construída numa imagem. Como a gente se apresenta pro mundo importa, porque é isso que ouvimos o tempo inteiro.
Mas peraí, eu continuo a mesma. Eu continuo CorpoAlma. Eu continuo BrincanteDivertida. Eu continuo EróticaLúdica. Eu continuo ImoralInsensata. Eu continuo DevaneioCriativa. Eu continuo AnimalEmocional. Eu continuo eu mesma.
O que mudou foi apenas o reflexo no espelho.
Lembro de Emma Thompson falando na coletiva de imprensa sobre esse habito feminino de ficar olhando no espelho e encontrar defeitos.
Eu, que já tive cabelo curto (estilo joãzinho na época, hoje chamado de pixie cut) estava ali, chorando no banho, por causa de um corte de cabelo. Isso mostra o quanto nada é um lugar conquistado, assunto resolvido, cheguei aqui e me livrei disso; tudo são níveis.
No quarto, penso como é bom quando algo dá ruim e sai errado. Porque me permitiu (re)encontrar partes de si mesma, acessar emoções que eu não teria acessado, se tivesse tudo dado certo e eu saísse feliz da cadeira do salão.
P.S. : Cabelo ao vento, gente jovem reunida… O estilo longo e selvagem pode ter sido revolucionário durante o Romantismo, corrente artística que confrontou o Neoclassicismo francês, no século XVIII.
Mas hoje é uma estética bem careta, bem retrô, bem ultrapassada, bem tradicional, bem bela, recata e do lar.
Talvez, esse cabelo curto-torto diz mais sobre mim, que tenta descobrir formas de conversar sobe femdom e propor um plug anal aos homens. Porém aí já é história pra outro texto (interessados, vem de dm).