Critérios de doação de sangue: medicina ou tabu?
Por: Gabriela Blenda, Juliana Marinho, Salete Maso e Sina Winkler
No Brasil, a doação de sangue é um ato voluntário e incentivado por campanhas nacionais para atrair doadores, uma vez que o país não cumpre a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) de 3% da população nacional ser doadora. Os hemocentros são instituições nacionais que coordenam essa doação, segundo critérios sanitários da ANVISA (Agência de Vigilância Sanitária).
As campanhas de incentivo, que convencem à população sobre a praticidade do ato voluntário, bastando se deslocar a um hemocentro de sua região, não comunicam o critério que vem impedindo o abastecimento do estoque sanguíneo. A entrevista presencial, cujo objetivo é avaliar a aptidão do possível doador, realiza uma série de perguntas relacionadas a saúde e bem-estar físico do voluntário: histórico de doenças, medicamentos utilizados, cirurgias, orientação e atividade sexual. Esse questionário realizado pelo profissional de saúde é decisivo, impedindo ou autorizando a doação de sangue.
Embora respondam à mesma legislação, os hemocentros registram disparidade nas informações divulgadas em seus sites. Por exemplo, a Hemominas especifica os medicamentos cujo uso impede a doação. Já a Fundação Pró-Saúde, de São Paulo, lista doenças que impossibilitam a contribuição para o banco sanguíneo. Nesses sites dos hemocentros, incluindo a HEMOBA, não há declaração sobre a orientação sexual, ainda que seja um fator determinante para liberação do doador.
O Drº Eduardo Neto, médico infectologista do Hospital Universitário da UFBA (Universidade Federal da Bahia) declarou, em entrevista para nossa reportagem que os testes feitos com o sangue doado não identificam o vírus do HIV durante a janela da infecção, período de até um ano para o vírus se manifestar.
O relacionamento estável costuma ser um critério de seleção dos doadores sanguíneos. Pessoas casadas entram no grupo de aptidão, enquanto os solteiros sexualmente ativos são orientados a retornarem após um ano, por ser considerado exposto a situação de risco de infecção. Isso contraria as pesquisas que mostram o crescimento da DST (Doença Sexualmente Transmissível) na população feminina. O risco da exposição de mulheres casadas é maior pela falta de métodos preventivos entre os parceiros.
O Ministério da Saúde divulgou, em 2018, um boletim epidemiológico da população brasileira portadora do vírus do HIV e da doença manifesta, a AIDS. Entre os entrevistados, apareciam em primeiro lugar as mulheres heterossexuais — 96,8% estavam com HIV — e em segundo lugar, os homens homossexuais — com 59,4% do total registrado.
Por volta de 1990, ídolos do mundo inteiro morreram vítimas da doença por desconhecimento científico da época. Essa associação entre homossexuais e a AIDS é um estigma que perdura. A Resolução 34/2014 da ANVISA e a Portaria 158/2016 declaram a inaptidão de homens que tiveram relações sexuais com outros homens. O estado do Rio Grande do Norte registou, em 2007, uma ação judicial de um homem gay, que foi barrado ao declarar sua sexualidade, sendo que antes realizava o ato voluntário omitindo a informação.
Para discutir sobre o tema, gravamos um Podcast, que reúne entrevistas com a assistente social Iara Matos (responsável pelo setor de captação do sangue do Hemoba) e dois voluntários que omitiram informações pessoais para conseguir doar sangue: Alice e Fernando. No podcast eles comentam sobre suas experiências como doadores, confira trechos da entrevista:
Alice, estudante de Direito, questiona o critério da sexualidade para aptidão: “A gente sabe inclusive hoje em dia que muitas mulheres casadas adquirem o vírus HIV dos maridos porque transam sem proteção, confiam que não estão sendo traídas, que o marido não tem nenhum problema e depois descobrem que sim. Então os critérios deveriam ser um pouco mais razoáveis nesse sentido.”
Fernando, motorista de Uber, foi convencido por uma amiga sobre a importância do ato voluntário e confessa ter ficado desconfortável por ter que mentir sobre ser gay para conseguir doar sangue: “[…] Devido a isso foi a primeira vez que doei e nunca mais voltei, nunca mais passou pela minha cabeça voltar a doar sangue justamente por conta dessa situação. Espero que um dia revejam isso e que esse preconceito seja derrubado.”