agora que não somos nada
sei como é o seu hálito matinal
a sua fome
o seu cansaço
o seu sono
a sua insônia
a dor do sangue que não circula
sei como é
sua pupila
seu urro
seu toque
sei como move os quadris
sei como dança com os braços
sei quando está chateado
empolgado
desolado
sei quando muda o seu timbre
sei o que sente jim carrey
naquele filme
quando escolhe a cirurgia
pra apagar as memórias
que torturam
agora que somos perfeitos
desconhecidos
sem intimidade
sem vínculo
vizinhos partilhando o elevador
estranhos com lembrança incomum
agora que somos nada
é melhor escutar bethânia
brincar de viver
do que se queimar de verdade
e deixar arder
agora que nos vimos de perto
preferimos ficar longe
respeitar a placa de trânsito
manter a distância
agora que aceito o que me escapa
o que me saliva
nunca foram os deuses
sempre fomos nós
humanos
cheios de culpa por seus
desejos e medos
acertos e erros
ataques em legítima defesa
bélicos, como os troianos
teatrais, como os gregos
épicos
enchendo o grande vazio existencial desta linguiça
quis ser só
assumir toda a autoria
algoz do próprio destino
condenada à própria sorte de escolhas
para que ninguém reparasse
nas cicatrizes abertas
na pele ferida
por baixo do lobo tolo
muito barulho
muito silêncio
pra que ninguém note
o olhar úmido de prazer e tristeza
a Vida nunca seria boa o bastante
se é pra mostrar
em vez de esconder
então aqui está
a cena
bruta e crua
a carne sem pano sem ensaios
aceitando o tomate na cara
a vaia
a coroa de louros que nunca vem
uma estética agressiva
pra desviar da dor
pra disfarçar a dor
atores são animais em zoológico
encantados com o holofote
insistimos em fazer arte
insistimos no que nos escapa
insistimos: a Vida não basta
tô aprendendo a calejar
tô aprendendo a existir
tô engolindo o componente alérgico
pra não morrer do que me mata
pra morrer de gozo